quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

FHC - OS QUE ESTÃO VIVOS E OS MORTOS

TERÇA-FEIRA, 27 DE NOVEMBRO DE 2012
OS QUE ESTÃO VIVOS E OS MORTOS
Independentemente de você simpatizar (ou não) com FHC, esse texto merece ser lido, não é de cunho político, apenas existencial...
Por Fernando Henrique Cardoso
No fundo estamos condenados ao mistério
As pessoas dizem, eu gostaria de sobreviver além da minha materialidade...
Eu não acredito que vá sobreviver mas , pelo menos na memória dos outros,
você sobrevive
Vivi intensamente isso com a perda da Ruth
Olhando para trás, é claro que ela estava com um problema grave de saúde
Apesar disso fizemos uma viagem longa e fascinante à China 
É como se o problema não existisse
A gente sabe que um dia vai morrer e no entanto vive como se fosse eterno.
Depois da morte de Ruth e, mais recentemente, de outros amigos, como Juarez Brandão Lopes e Paulo Renato, eu me habituei a conversar com os que morreram
Não estou delirando
Os mortos queridos estão vivos dentro da gente
A memória que temos deles é real.
À medida que vamos ficando mais velhos, convivemos cada vez mais com a memória
Conversamos com os mortos. 
Por intermédio da Ruth, passei a lembrar mais dos outros que morreram, dos meus pais, meus avós.
Os que morreram e nos foram queridos continuam a nos influenciar
O que não há mais é o contrário
Não podemos mais influenciá-los.
Eu não penso na morte
Sei que ela vem
Já senti a morte de perto
Não em mim
Senti a morte de perto nos meus
E procuro conviver com ela através da memória.
Os que se foram continuam na minha memória e eu converso com eles.
Minha mãe, meu pai, minha avó, minha mulher, meu irmão, meus amigos que se foram são meus referentes íntimos
Tudo isso constitui uma comunidade – posso usar a palavra – espiritual, que transcende o dia a dia.
Então, a morte existe, ela é parte da vida, é angustiante, não se sabe nunca quando ela vai ocorrer
Eu só peço que ela seja indolor
Não sei se será
Ninguém sabe como e quando vai morrer
Pessoalmente, tenho mais medo do sofrimento que leva à morte do que da morte propriamente dita
Se não é possível ter a pretensão utópica de sobreviver como pessoa física, é possível ter a aspiração de viver na memória, começando por conviver com a memória dos que se foram
Isso tem alguma materialidade?
Nenhuma
Isso é científico?
Não é.
Mas é uma maneira de você acalmar sua angústia existencial.
"Os mortos queridos vivem dentro de nós.
Os que morreram continuam anos influenciar
Nós é que não podemos mais influenciá-los"
SENTIDO DA VIDA
Aos 80 anos creio que cada um cria o sentido de sua vida
Não há um único sentido
Isso é muito dramático
Cada um tem que tentar criar o seu sentido
Nesse ponto os existencialistas têm razão
É muito angustiante
Tem uma dimensão da existência que é inexplicável
Ou você consegue conviver com isso no dia a dia sem apelar para a transcendência – digo no dia a dia porque, de vez em quando, todo mundo apela... – ou você tem que criar algum sentido para justificar, se não explicar,
o sentido das coisas.
Eu criei, imagino que sim
Achei que devia ter uma ação intelectual para entender e para mudar o Brasil.
Na verdade é isso que eu queria, mudar as condições de vida no Brasil
A literatura me influenciou muito, sobretudo a nordestina, José Lins do Rego,
Graciliano Ramos, Jorge Amado
Depois as Vinhas da Ira, de John Steinbeck, sobre a revolta social na América da Grande Depressão
Ou mesmo Roger Martin Du Gard com Os Thibault e, já noutra direção, André Gide e, também, a metafísica de A montanha mágica, de Thomas Mann
Esse caminho da literatura me contagiou e me levou à política.
Passei a vida inteira tentando entender melhor a sociedade, os mecanismos que podem levar a uma sociedade mais decente, como digo hoje, não apenas mais rica, e sim mais decente.
Tem que haver, é claro, algum grau de riqueza, senão a miséria, a escassez,
predomina e então não se tem nem liberdade nem igualdade
A escassez é a luta, a guerra pela sobrevivência
Tem que haver um certo bem-estar material
Além disso, porém, é preciso criar uma condição humana de dignidade, de decência, de aceitação e respeito pelo outro
Tentei entender isso do ponto de vista intelectual e fazer a mesma coisa do ponto de vista político.
Então acho que dei um certo sentido à minha vida
Esse sentido tem que ser dado por cada um
Não está dado que todos tenham que ter o mesmo sentido e haverá quem nunca encontre sentido na vida e fique batendo cabeça
"Quando se vai ficando velho e, portanto,mais maduro, você tem que valorizar mais a felicidade, a amizade,essas coisas que, no começo da vida,
parecem secundárias"
Essa angústia vai ser permanente
Não tem solução
É parte da condição humana
Não sabemos de onde viemos, não sabemos para onde vamos.
Tampouco sabemos por que e para que estamos aqui
O que não podemos é deixar que essa angústia da morte e da ausência de um destino claronos paralise.
Cada um tem que inventar sua resposta
Cada um tem que dar sentido à sua vida
Ela não tem sentido em si
Esse sentido não está dado
Cada um tem que construir o seu sentido
E vai sofrer para encontrar
Uma resposta está no próprio convívio com os outros
Inclusive com os mortos
Talvez isso arrefeça um pouco a angústia
Não se vive sem amizade, sem amor, sem adversidade
Quando se vai ficando velho e, portanto, mais maduro, você tem que valorizar mais a felicidade, a amizade, essas coisas que, no começo da vida, parecem secundárias
Você continua querendo mudar o mundo, mas sabe que as pessoas contam
Embora eu tenha sempre me definido como mais intelectual do que como político, na verdade minha vida foi muito mais dedicada ao público.
Isso vem da minha ancestralidade, da minha convivência familiar
O sentido, para mim, sempre consistiu em buscar fazer alguma coisa que mude a situação mais ampla do que a minha própria
Nunca fui uma pessoa voltada em primeiro lugar para alcançar o meu bem-estar
Eu tenho bem-estar
Diria que quase sempre tive bem-estar
Mas esse não foi o meu valor
Mesmo em termos subjetivos, a ideia de felicidade, nunca busquei com denodo a felicidade pessoal.
Eu a tive de alguma forma, nunca me senti infeliz
Eu me dediquei muito mais a ver a situação dos outros
De uma maneira modesta, sem proclamar
Mas levei a vida inteira pensando no mundo, pensando na sociedade,
pensando nas pessoas, nos outros
O sentido que dei à minha vida foi construir isso

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