domingo, 10 de
março de 2013
O que o aumento do
consumo da “droga da obediência”, usada para o tratamento do chamado Transtorno de Déficit de
Atenção e Hiperatividade, revela sobre a
medicalização da educação?
ELIANE BRUM
Um estudo divulgado
na semana passada pela Anvisa (Agência
Nacional de Vigilância Sanitária) deveria ter disparado um alarme dentro das casas e das escolas – e
aberto um grande debate no país.
A pesquisa mostra que, entre 2009 e 2011, o consumo do metilfenidato,
medicamento
comercializado no Brasil com os nomes Ritalina e Concerta,
aumentou 75% entre
crianças e adolescentes na faixa dos 6 aos 16 anos.
A droga é usada para
combater uma patologia controversa chamada de
TDAH – Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.
A pesquisa detectou
ainda uma variação perturbadora no consumo do remédio: aumenta no segundo
semestre do ano e diminui no período das férias escolares.
Isso significa que
há uma relação direta entre a escola e o uso de uma droga tarja preta, com
atuação sobre o sistema nervoso central e criação de dependência física e
psíquica. Uma observação: o metilfenidato é conhecido como “a droga da obediência”
O boletim da Anvisa é uma indicação de que o uso abusivo do metilfenidato pode se
tornar um problema de saúde pública no Brasil.
A pesquisa é o ponto
de partida para vários caminhos de investigação, inclusive jornalística.
Por que Porto
Alegre é a capital brasileira com maior consumo
da droga?
Por que o Distrito
Federal é, entre as unidades da federação, a que
registrou maior uso de metilfenidato?
Por que Rondônia, entre os estados do norte, tem um consumo 13 vezes maior que o
estado com menor consumo registrado?
O que diferencia os
médicos brasileiros, concentrados
nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul, que mais prescrevem o medicamento no
Brasil?
E por que os três
maiores prescritores, dois deles profissionais do Distrito
Federal, são os mesmos nos três anos pesquisados?
Em 2011, as famílias brasileiras gastaram R$ 28,5 milhões na compra da
droga da obediência – R$ 778,75 por cada mil crianças e adolescentes com idade
entre 6 e 16 anos
É preciso seguir as pistas e compreender o que está acontecendo.
A TDAH seria um transtorno
neurológico do comportamento que atingiria de 8 a 12% das crianças no mundo.
No Brasil, os
índices são bastante discordantes, alcançando até 26,8%.
Os sintomas
considerados para o diagnóstico em crianças são: apresentar dificuldade para
prestar atenção e passar muito tempo sonhando acordada;
parecer não ouvir
quando se fala diretamente com ela; distrair-se facilmente ao fazer tarefas ou
ao brincar; esquecer as coisas; mover-se constantemente ou ser incapaz de
permanecer sentada; falar excessivamente; demonstrar incapacidade de brincar
calada; atuar e falar sem pensar; ter dificuldade para esperar sua vez;
interromper a conversa de terceiros; demonstrar inquietação.
Um parêntese.
A droga tem sido usada por jovens e adultos de todas as idades, na crença de que ela
potencializaria a atenção e o rendimento.
É difícil quem não
conheça alguém que já usou o medicamento para fazer provas na escola ou na
universidade, assim como em vestibulares e concursos.
O uso é disseminado
no ambiente profissional, utilizado por quem quer melhorar seu desempenho ou
precisa terminar um trabalho em prazo curto.
Também é popular
entre aqueles que querem ficar “bombados” para uma balada.
Alguns recorrem ao
mercado ilegal, outros simulam os sintomas de TDAH nos consultórios médicos para conseguir a receita.
Sobre esse tipo de
consumo há unanimidade: é totalmente contraindicado.
Entre as
considerações finais, os autores da pesquisa da Anvisa, Márcia
Gonçalves de Oliveira e Daniel
Marques Mota, afirmam:
- Os dados
demonstram uma tendência de uso crescente no Brasil.
No entanto, a
pergunta que precisa ser respondida é se esse uso está sendo feito de forma
segura, isto é, somente para as indicações aprovadas no registro do medicamento
e para os pacientes corretos, na dosagem e períodos adequados.
O uso do medicamento
metilfenidato tem sido muito difundido nos últimos anos de forma, inclusive,
equivocada, sendo utilizado como “droga da obediência” e como instrumento de
melhoria do desempenho seja de crianças, adolescentes ou adultos.
Em muitos países,
como os Estados Unidos, o metilfenidato tem sido largamente utilizado entre
adolescentes para melhorar o desempenho escolar e para moldar as crianças,
afinal, é mais fácil modificá-las que ao ambiente.
Na verdade, o
medicamento deve funcionar como um adjuvante no estabelecimento do equilíbrio
comportamental do indivíduo, aliado a outras medidas, como educacionais, sociais e psicológicas.
Nesse sentido,
recomenda-se proporcionar educação pública para diferentes segmentos da
sociedade, sem discursos morais e sem atitudes punitivas, cuja principal
finalidade seja a de contribuir com o desenvolvimento e a demonstração de
alternativas práticas ao uso de medicamentos.
Além do
questionamento proposto pelos autores, outras perguntas podem e devem ser
colocadas: existe um doping legalizado das
crianças?
A escola, em vez de
olhar cada aluno a partir da sua história e de sua singularidade, está sendo
agente de um processo de homogeneização e silenciamento de crianças e
adolescentes considerados “diferentes”?
Estaria a droga da
obediência sendo usada como uma espécie de “método pedagógico” perverso?
O que isso significa?
E por que não há uma discussão mais ampla
em toda a sociedade brasileira?
A controvérsia sobre a droga da obediência e o chamado
Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é grande.
Por uma série de
razões, porém, pouco chega à população.
É comum ouvir nas
ruas, nas escolas e nas festas infantis que alguma criança é “hiperativa”, já que o diagnóstico e a
crença de que a suposta doença possa ser resolvida com uma droga se difundiu na
sociedade.
Para uma parcela
significativa das pessoas, soa como uma daquelas verdades “científicas” inquestionáveis.
Na realidade, os
questionamentos são muitos.
Há quem denuncie que
os diagnósticos são mal feitos, levando à prescrição equivocada do medicamento.
Há quem defenda que
a doença sequer existe – seria uma invenção promovida pelo marketing da
indústria farmacêutica.
Para colaborar com o
acesso ao que poderia ser chamado de “o outro lado do TDAH”, elenquei algumas das
principais críticas e ponderações sobre a patologia e o uso da droga, feitas
por pesquisadores das áreas da medicina,
psicologia,
psicanálise e educação.
Todos os artigos citados – exceto um, ainda inédito – têm livre acesso e podem ser lidos na íntegra na
internet.
O foco principal é a
relação entre a droga/diagnóstico e a escola, explicitada de forma inequívoca
pelo boletim da Anvisa.
1- A medicina e a definição da “normalidade”
A história da
medicina é uma história também de como ela deixa de ser o estudo das doenças
para passar a definir o que é a normalidade.
“A medicina se atribui todo o universo de relações do homem com
a natureza e com outro homem, isto é, a vida.
Legislando sobre hábitos de alimentação, vestuário, habitação,
higiene, aplica a esses campos a mesma abordagem empregada frente às doenças.
Adotando (assim) um discurso genérico, aplicável a todas as
pessoas, porque neutro”, afirma Maria
Aparecida Affonso Moysés, professora titular
de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, em um artigo muito
interessante, intitulado “A Medicalização na
Educação Infantil e no Ensino Fundamental e as Políticas de Formação Docente”
“Com o consentimento da sociedade, que delega à medicina a
tarefa de normatizar, legislar e vigiar a vida, estão colocadas as condições
históricas para a medicalização da sociedade, aí incluídos comportamento e
aprendizagem.(...)
É preciso abolir as particularidades, o subjetivo, a imprecisão,
para que o pensamento racional e objetivo se imponha.
Não se esqueça que o discurso médico, nesse momento – aliás, o
discurso científico, em qualquer momento – está afinado com as demandas dos
grupos hegemônicos.”
A medicalização, segundo a pediatra, é resultado do processo de conversão de questões sociais e humanas
em biológicas – transformando os problemas da vida em doenças ou distúrbios.
É neste contexto que
teria surgido uma doença que impediria a criança de aprender, com outros nomes
antes de ser registrada como TDAH.
É assim que se
medicaliza a educação, transformando problemas pedagógicos e políticos em
questões biológicas e médicas.
“O discurso médico irá apregoar a existência de crianças
incapazes de aprender, a menos que submetidas a uma intervenção especial – uma
intervenção médica”, afirma.
E conclui: “A
atuação medicalizante da medicina consolida-se ao ser capaz de se infiltrar no
pensamento cotidiano, ou, mais precisamente, no conjunto de juízos provisórios
e preconceitos que regem a vida cotidiana.
E a extensão (e a intensidade) em que
esse processo ocorre pode ser apreendida pela incorporação do discurso médico,
não importa se científico ou preconceituoso, pela população.
A medicina constrói, assim, artificialmente, as ‘doenças
do não-aprender-na-escola’ e a consequente demanda por serviços de
saúde especializados, ao se afirmar como instituição competente e responsável
por sua resolução.
A partir deste momento, a medicina se apropriará cada vez mais
do objeto aprendizagem.
Sem mudanças significativas, apenas estendendo seu campo
normativo”.
professora da
Universidade Federal de Ouro Preto, com doutorado em educação, explicita a
diferença entre “medicar” e “medicalizar”:
“Medicar pode ser necessário, desde que caso a caso.
Já a medicalização é o processo pelo qual o modo de vida dos
homens é apropriado pela medicina e que interfere na construção de conceitos,
regras de higiene, normas de moral e costumes prescritos – sexuais,
alimentares, de habitação – e de comportamentos sociais.
Este processo está intimamente articulado à idéia de que não se
pode separar o saber – produzido cientificamente em uma estrututa social – de
suas propostas de intervenção na sociedade, de suas proposições políticas
implícitas.
A medicalização tem, como objetivo, a intervenção política no
corpo social”.
2- A escola e o ciclo da medicalização da infância
O caminho que leva ao diagnóstico de TDAH e à prescrição da droga da
obediência, entre os mais pobres e usuários da rede pública de ensino, inicia
na escola, a partir das dificuldades de aprendizagem e/ou insubordinação de
determinada criança ou adolescente.
Como a família em
geral não conseguiria dar uma resposta ao problema, a escola ou encaminha ao
médico, ou aciona o conselho tutelar.
Entre as crianças
mais ricas, clientes do sistema privado de ensino, o ciclo é semelhante, com
exceção de que estas não estão vulneráveis à tutela e à vigilância do Estado.
Neste caso, a escola
encaminha ao psicólogo e este ao neuropediatra – ou diretamente ao
neuropediatra, que prescreve o medicamento.
Esta é a análise da
psicanalista Michele Kamers, professora do curso de psicologia do Ibes-Sociesc, coordenadora
dos cursos de especialização em psicologia hospitalar e da saúde e
psicopatologia da infância e da adolescência do Hospital Santa Catarina, de
Blumenau, e mestre em educação pela Universidade de São Paulo.
No artigo intitulado
“A Fabricação da
Loucura na Infância: Psiquiatrização do
Discurso e Medicalização da Infância”, ainda inédito, ela
afirma que a escola se converteu em um mecanismo de inclusão da criança no
campo do saber médico-psiquiátrico.
“As escolas, as unidades de saúde e as clínicas privadas
agenciam e legitimam a intervenção médica e farmacológica sobre a criança,
fazendo com que a medicalização venha se convertendo na principal forma de
tratamento utilizada para responder às demandas sociais realizadas pelas
instituições de assistência à infância”, diz.
“A medicina, juntamente com a assistência psicológica, social e
pedagógica,
forma uma rede de tutela e encaminhamentos múltiplos.
A partir do momento em que a criança e sua família são
capturadas, não conseguem mais sair.”
É corriqueiro,
segundo Margareth Diniz, receber pais em busca de tratamento para seus filhos por exigência
da escola.
“Todos nós que nos ocupamos da clínica também estamos habituados
com solicitações de tratamento de crianças a partir de uma exigência da escola
em relação à sua inadaptação, ou inadequação às regras mais elementares de seu
aprendizado e de sua socialização.
Normalmente são os pais, mais especificamente as mães, que nos
formulam esse pedido.
O que torna esses pedidos curiosos é que, invariavelmente,
trazem consigo um enunciado pedagógico nos seguintes termos:
‘A escola chegou à conclusão que esta criança necessita de um
acompanhamento’”.
A psicóloga Renata
Guarido, que defendeu uma
tese de mestrado na Universidade de São Paulo intitulada “O Que Não Tem Remédio,
Remediado Está: a
Medicalização da Vida e Algumas Implicações do Saber Médico na Educação”, mostra como a criança
passou de objeto da pedagogia a objeto da medicina.
“Vemos as crianças e suas famílias submetidas ao poder exercido
pela constituição de um domínio do saber médico-psicológico, sem que o contexto
de seus sofrimentos, bem como sua possibilidade de tratamento, sejam orientados
para outras formas de consideração da subjetividade, que não a normalizante e
de ‘treinamento’”.
Em sua análise,
Renata reforça como são corriqueiras hoje nas escolas as cenas em que
professores e coordenadores dão o diagnóstico de TDAH diante de determinados
comportamentos das crianças e adolescentes, encaminhando-os para avaliação
psiquiátrica, neurológica e psicológica.
Também já faz parte
da rotina professores e outros agentes escolares perguntarem aos pais de um
aluno em tratamento se ele foi corretamente medicado naquele dia.
“Tais procedimentos nos permitem entrever que estão crentes de
que a variação no uso do remédio é responsável pela variação dos comportamentos
e estados psíquicos das crianças, e que esta não teria nenhuma relação com
variações, mudanças ou experiências no interior do cotidiano escolar. (...)
Ao assumir e validar o discurso médico-psicológico, a pedagogia
não deixa de fazer a manutenção dessa mesma prática, desresponsabilizando a
escola e culpabilizando as crianças e suas famílias por seus fracassos”.
3- A criança como objeto, não mais como sujeito
Entre as principais
críticas feitas por aqueles que alertam para o processo de medicalização da
infância – e especificamente sobre o TDAH e a droga da obediência – está a constatação de que
as crianças deixam de ser escutadas na sua singularidade, como um protagonista
que tem uma história e está inserido num contexto familiar e social, para se
tornar um objeto com uma falha no corpo, sujeito à intervenção e à correção por
medicamentos.
Assim, as crianças e
adolescentes têm sido calados naquilo que estão tentando dizer a pais e
professores, em nome de um ideal de “normalidade”
determinado pelo
olhar médico e legitimado e reproduzido pela escola
– e também pelos dispositivos de vigilância do
Estado.
O que se cala são os
conflitos – que deveriam ser os propulsores do ato de educar.
Em O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea (Via
Lettera, 2011), o psicanalista Alfredo
Jerusalinsky escreve um capítulo
intitulado “Gotinhas e
comprimidos para crianças sem história – uma psicopatologia pós-moderna para a
infância”.
Ele afirma: “Não se questiona o que quer dizer este
ponto, esta palavra ou este gesto fora do lugar. (...)
Na trajetória que estamos descrevendo, foi se apagando esse
esforço por ver e escutar um sujeito, com todas as dificuldades que ele
tivesse, no que tivesse para dizer, e foi-se substituindo o dado ordenado
segundo uma nosografia (descrição das doenças) que apaga o sujeito. (...)
É assim que os problemas deixam de ser problemas para serem
transtorno.
É uma transformação epistemológica importante, e não uma mera
transformação terminológica.
Um problema é algo para ser decifrado, interpretado, resolvido;
um transtorno é algo a ser eliminado, suprimido porque molesta.
Os nomes das categorias não são inocentes”.
Em artigo já citado,
Renata Guarido mostra que não é
calada apenas a voz dessas crianças e adolescentes classificados como fora do
padrão de uma pretensa normalidade.
Mas até mesmo o seu
nome é apagado.
“Não é incomum observar, nas unidades de saúde ou mesmo nas
escolas, que o nome do paciente ou do aluno seja substituído por sua
classificação diagnóstica – estranha nomeação dos indivíduos que põe em relevo
o lugar que ocupam na escala normal”, diz Renata.
“A medicalização em larga escala das crianças nos tempos atuais
pode ser lida também como apelo ao silêncio dos conflitos, negando-os como
inerentes à subjetividade e ao encontro humano.
Que o discurso pedagógico contribua para a manutenção desse tipo
de recurso deve ser objeto constante de crítica em direção à possibilidade de
que o lugar do ato educativo seja redefinido”
Em “Hiperatividade: o ‘Não
Decidido’ da Estrutura ou o ‘Infantil’ ainda
no Tempo da Infância”, as psicanalistas Viviane
Neves Legnani, professora da
Universidade de Brasília (UnB), e Sandra
Francesca Conte de Almeida,
professora da
Universidade Católica de Brasília, refletem sobre a TDAH a partir da descrição de um
caso concreto (leia
aqui).
Elas afirmam: “Nossa experiência com escolas permitiu observar que muitos
professores se servem dos indicadores descritivos que acompanham o diagnóstico
de TDAH para sustentar uma prática pedagógica ‘didaticamente planejada’ para lidar ‘com os difíceis alunos
portadores de hiperatividade’.
O preço deste
planejamento, no entanto, nem sempre é considerado: a impossibilidade de a
criança encontrar o seu lugar na escola, a partir de sua singularidade.
Como consequência da
padronização pedagógica, ‘cientificamente’ estruturada, tem-se que o educador não escuta e não legitima a
palavra dita pela criança, já que esta é vista como ‘doente’ e, portanto, incapaz”
4- Ninguém se responsabiliza – ou por que a medicalização
prospera
Não é apenas a
escola que se desresponsabiliza, quando aquilo que pertence ao humano é tratado
como patologia, mas também a criança e o adolescente, na tarefa de criar uma
vida.
Ao serem
classificados como doentes ou portadores de um transtorno, e ao introjetarem
este ser/estar no mundo como doentes ou portadores de um transtorno, é o
diagnóstico que lhes determina o destino.
Na hipótese de
realizar qualquer conquista, ela é computada na conta da droga.
“Crianças e adultos, sendo desresponsabilizados de sua
implicação com aquilo que lhes acontece, tornam-se também impotentes para
atuarem sobre seus sofrimentos e aprendizados.
E a impotência é então mais um efeito deste discurso biológico.
Só é visto como potente o especialista que saberia o que fazer
diante do diagnóstico que profere.
Sendo o aprendizado descrito como efeito do funcionamento
cerebral, da estimulação correta deste órgão que nos governa, temos sua
descrição reduzida a uma dimensão privada, que ocorre no interior do indivíduo
e não a partir do laço entre dois ou mais sujeitos.
Ou seja, o aprendizado perde o caráter de ser fruto da ação
humana, dimensão do encontro na pluralidade própria do mundo público, onde
produzimos história”.
Margareth Diniz analisa por que a aceitação desse discurso ecoa na sociedade e é
por ela reproduzido:
“A criança e o adolescente esperam do outro que lhe responda
algo acerca do enigma de sua existência, e os outros esperam das crianças que
se conduzam na vida de modo a responder aos seus ideais.
A fim de salvar os pais de tamanha angústia diante do não saber,
surgem as tentativas de tornar científicas as respostas a estas questões, na
busca de aplacar o mal-estar.
A ciência começa a forjar um saber que não pertence nem ao pai,
nem a mãe.
Estes são levados a interferirem cada vez menos na educação dos
filhos.
Entra em cena a figura dos especialistas, autorizados
principalmente pelo discurso da mãe, que demonstra um verdadeiro fascínio pela
promessa de um saber total, sem furos”.
Não são apenas os
professores, mas também os pais que passaram a exigir diagnóstico e medicamento
para calar os conflitos na escola e dentro de casa.
Afinal, é muito mais
fácil lidar com uma “doença”, quase uma
fatalidade, que diz respeito apenas ao funcionamento de um corpo e para a qual
existiria uma pílula milagrosa, do que escutar o que uma criança ou um
adolescente está dizendo com seu comportamento.
“Os pais acusam as escolas de rotular suas crianças de
hiperativas indiscriminadamente, antes mesmo de obter um diagnóstico médico,
mas há relatos de que também alguns pais impacientes andam utilizando o
diagnóstico de hiperatividade como desculpa para entupir seus filhos de remédio
e mantê-los ‘sossegados’, daí que o medicamento tenha sido batizado
por ‘droga da obediência’”, afirma
Margareth.
“Isso os desculpabiliza por não estarem dando conta de impor
limites aos filhos, por exemplo, em relação à hora de dormir ou de desligar
seus computadores e jogos eletrônicos.”
5- O marketing da indústria farmacêutica
O transtorno de
hiperatividade pode ser um daqueles casos em que a droga ajuda a moldar o
diagnóstico.
Críticos da
medicalização afirmam que não é comprovada a existência de uma doença que só
altere o comportamento e a aprendizagem.
Neste sentido, a
disseminação do diagnóstico de TDAH inverteria a lógica da medicina, na qual seria preciso primeiro
comprovar a doença e depois tratá-la.
O fenômeno
obedeceria mais à lógica do mercado do que a da saúde – com a relação próxima
e, em alguns casos, promíscua, entre laboratórios e médicos.
“A ligeireza (e imprecisão) com que
as pessoas são transformadas em anormais é diretamente proporcional à
velocidade com que a psicofarmacologia e a psiquiatria contemporânea expandiram
seu mercado.
Não deixa de ser surpreendente que o que foi apresentado como
avanço na capacidade de curar tenha levado a ampliar em uma progressão
geométrica a quantidade de doentes mentais”, alertam Alfredo Jerusalinski e Silvia Fendrik em O Livro Negro da
Psicopatologia Moderna.
“A produção de saber sobre o sofrimento psíquico encontra-se
associada à produção da indústria farmacêutica de remédios que prometem aliviar
os sofrimentos existenciais.
O consumo em larga escala dos medicamentos e o crescimento
exponencial da indústria farmacêutica tornam-se elementos indissociáveis do
exercício do poder médico apoiado em um saber consolidado ao longo do século
XX”,
analisa Renata
Guarido.
“Se a psiquiatria clássica, de forma geral, esteve às voltas com
fenômenos psíquicos não codificáveis em termos do funcionamento orgânico,
guardando espaço à dimensão enigmática da subjetividade, a psiquiatria
contemporânea promove uma naturalização do fenômeno humano e uma subordinação
do sujeito à bioquímica cerebral, somente regulável por uso de remédios.
Há aí uma inversão não pouco assustadora, pois na lógica atual
de construção diagnóstica, o remédio participa da nomeação do transtorno.
Visto que não há mais uma etiologia (estudo
das causas da doença) e uma historicidade a serem consideradas, pois a verdade do
sintoma/transtorno está no funcionamento bioquímico, e os efeitos da medicação
dão validade a um ou outro diagnóstico.”
*******************
Estes cinco pontos são apenas algumas pistas para compreender o
crescimento do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade entre as crianças e
adolescentes e a disseminação da droga da obediência.
Dito de outro jeito,
questionar o aumento dos “anormais” nas escolas
brasileiras.
Ou dos “desobedientes”.
A falta de espanto
de pais e professores diante do fenômeno mostra como a medicalização está
naturalizada na sociedade brasileira.
Afinal, parte destes
pais e professores também fazem, no seu próprio cotidiano,
o uso de drogas
legais para silenciar suas dores humanas.
Por que acreditariam que com seus filhos
e alunos seria diferente?
Drogar-se, legalmente, é uma marca da nossa época.
Ninguém sabe quais
serão os efeitos a longo prazo do uso contínuo do metilfenidato sobre o cérebro em formação
das crianças.
O que acontecerá no
futuro com essa geração legalmente drogada ainda é uma incógnita.
Pelo menos, valeria a pena pensarmos no presente: por que estamos dopando crianças e adolescentes em vez de tentar
escutá-los e entendê-los em sua singularidade?
E o que isso diz sobre nós, os adultos?
Eliane Brum, jornalista,
escritora e documentarista.
Autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem:
Coluna Prestes – O avesso da lenda (Artes e Ofícios), A vida que ninguém vê (Arquipélago,
Prêmio Jabuti 2007) e O olho da rua - uma repórter em busca da literatura da vida real (Globo)
Twitter:@brumelianebrum
(Foto: Lilo Clareto/ Divulgação)
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