terça-feira, 13 de março de 1990
Parte VI
13/03/1990
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Pegando no trampo
Levantei-me às 6:30h da manhã bastante
confuso para começar a trabalhar aqui no Japão.
Apesar de sentir o meu corpo fora de
órbita, devido ao fuso horário, procurei manter firme na minha mente o
propósito da viagem.
Não haveria um tempo para a
readaptação no país.
Tudo teria de ser feito de acordo
com as circunstâncias do momento.
Tomei o café da manhã com o meu pai
– pão de forma com manteiga e café - e, antes de seguir para a fábrica
despedi-me dele acertando os detalhes de como fazer a comunicação entre nós.
Cada um ficou com o endereço e o
número do telefone do outro.
Às 7:10h pegava a minha “magrela preta” e me unia ao grupo de colegas que ia junto para a fábrica.
O rapaz que morava no mesmo
alojamento, trabalhava há quase um ano nesta empresa e nos mostraria o caminho
até lá.
Deixei os dois irem à frente e os
segui para observar melhor os pontos de referências que ia criando ao longo do
trajeto.
Quando o rapaz virou à direita entre
uma fileira de casas eu já tinha contado aquela rua como a terceira ao longo da
avenida em que morávamos.
Ela fazia um “L” no final à esquerda e cerca de uns 80 metros depois,
dobrávamos novamente à direita subindo uma pequena elevação onde tinha uma
ponte que cruzava um canal – o Hoshikawa -, para logo em seguida virar à direita e seguir o curso
deste córrego.
Sei apenas que cruzamos duas grandes
avenidas e um semáforo, antes de chegar até a fábrica.
Foram gastos menos de quinze minutos
neste percurso.
Guardamos as bicicletas num pequeno
abrigo do outro lado da rua, onde ficava o depósito da empresa.
Entramos no escritório fazendo a
saudação tradicional da manhã e fomos “bater o ponto”.
Já sabia como fazer, porque isto foi
explicado no dia anterior.
Ao chegar teria que ir até o quadro
na parede e virar a plaqueta com o meu nome.
Ela ficava virada na cor vermelha,
que significava a ausência do funcionário na empresa.
A conferência era feita pela leitura
dos nomes.
No final do expediente antes de ir
embora, teria que virar a plaqueta e deixá-la no vermelho novamente.
Seguimos dali para o galpão,
atravessando o grande portão.
Do lado direito encostado na parede
havia uma fileira de bancos com cinzeiros e um grande aquecedor.
Era o local de “kyuukei” (descanso), onde
poderíamos ficar até começar o expediente.
Fomos apresentados aos colegas que
estavam sentados e nos acomodamos nos bancos vazios.
Como o tempo estava gelado, procurei
ficar o mais perto possível daquela “lareira”, que achei incrível.
Aí, lembrei que em Brasília, não
teria a necessidade disto, e ri comigo mesmo.
Aqui no Japão ainda era inverno e
ventava muito, mesmo sendo o final de estação.
“Sofri” muito no trajeto do alojamento até a fábrica.
Acendi um cigarro enquanto recebia de
presente uma latinha de café quentinho, saído da máquina que ficava bem na
entrada.
De gosto estranho, mas uma maravilha
naquela hora.
Vinte minutos depois toca uma
sirene.
- Vamos lá, é hora do “taisô”!, - me chama o rapaz que mora no
nosso alojamento
- O que é taisô? – perguntei
- É a ginástica que fazemos todas as
manhãs.
Dura apenas cinco minutos e depois
começa a reunião que é feita antes do expediente.
Vai ver! – respondeu.
- Tá! – E lá fui eu balançar o meu
esqueleto
Na reunião matinal, após a saudação
geral, fomos chamados e apresentados para todos os funcionários.
A frase “yoroshiku onegai shimasu!”, mesmo com uma péssima pronúncia – estava bem nervoso
– foi uma das primeiras que aprendi em japonês.
Eu disse o meu nome e em seguida
esta frase que tinha o sentido de expressar a minha gratidão e os meus
préstimos à empresa e ao grupo de funcionários.
O que mais me chamou a atenção neste
primeiro contato de trabalho, era a forma e o conteúdo como eram conduzidos
esta reunião.
A hierarquia predominava e as
fileiras seguiam uma sequência dos mais veteranos aos mais novos.
Havia respeito mútuo e um sentimento
de servir à empresa em todos os sentidos.
Os relatórios do dia anterior
mencionavam a produção, as metas alcançadas, os problemas surgidos e detalhes
interessantes.
Todos os envolvidos manifestavam-se.
Em seguida apresentava-se a meta do
dia e as correções que deviam ser feitas.
Uma coisa ficou bem gravada na minha
mente: o quadro daquele encontro matinal lembrava-me muito a minha época,
quando servi no quartel lá em Brasília.
Assim que terminou a reunião o meu
chefe (hanchô), me conduz até o meu setor de trabalho.
Ia ficar na terceira cabine de soldas
com robô.
Vesti o avental de tecido parecido
com jeans, coloquei dois pares de luvas, e me posicionei diante da mesa
dividida em duas fases de produção.
Fiquei atento às instruções do “hanchô”,
principalmente quando ele me ensinou como apertar aquele botão vermelho.
Ao ver aquele robô laranja se
movimentando com o seu braço naquela velocidade e de um lado para outro, para
cima e para baixo, fiquei preocupado com a minha cabeça no meio do caminho.
O botão vermelho era para dar “stop” e
parar o robô.
Os dois botões verdes, um de cada
lado da mesa, era para dar o “start” e soltar o bicho de mais de três metros com o braço
esticado.
As peças que são soldadas do tamanho
da palma da minha mão eram colocadas em moldes à minha esquerda e outra à minha
direita.
Após encaixá-las, prendia-as com os
grampos em forma de duas pequenas alavancas que travavam as peças no lugar.
Depois era soltar o monstro acionando
o botão verde e pronto.
Na sequência, enquanto o robô soldava
uma peça eu trocava a peça pronta no outro molde e a colocava numa caixa atrás
de mim.
O tempo da manobra de cada peça era
de apenas trinta segundos.
No meu caso, essas peças eram
suportes para prender o escapamento na carroceria do veículo.
O meu primeiro dia foi extremamente
cansativo, porque além do ritmo puxado para um novato, o trabalho era feito em
pé.
Mesmo que a cada duas horas havia um
“kyuukei” de dez minutos, ainda assim, o meu corpo ressentiu
muito,
principalmente porque havia de fazer
mais duas horas extras (zangyô).
A meta do meu robô era a produção de
1.200 peças diárias.
Fiquei mais preocupado ainda na hora
do almoço quando abri o meu “bentô” (marmita), fornecida pela empresa, e vendo o seu conteúdo levei
um susto com um pedaço de polvo, cuja ponta do tentáculo parecia uma pequena
lagarta vermelha.
Como nunca tinha comido um e
cozinhado daquele jeito,
fiquei com uma péssima impressão que
só consegui comer o “gohan” (arroz).
À tarde o meu estômago roncava mais
que o motor da “Poderosa” (apelido
que dei para o meu robô).
Quando eu retornei ao alojamento, já
passavam das sete e meia da noite.
Não sei como consegui pedalar no
trajeto de volta, estava morto de cansado e nem senti o vento gelado bater no
meu rosto.
Estava mais moído do que qualquer
outra coisa, trazendo na pele as marcas do primeiro dia de combate.
Estava todo queimado no rosto, nos
braços e nas mãos.
As fagulhas incandescentes deixaram
furos negros nas mangas do meu uniforme, que também perdera a brancura inicial,
parecendo mais um saco de pano cheio de fuligem,
manchado de óleo e graxa.
Assim que entramos na sala, sentamos
em volta da mesinha sobre o tatame (piso
em módulos feitos de palha de arroz),
começamos a conversar sobre o trabalho no Japão.
Esticamos as pernas por baixo da mesa
porque havia sob o tampo dela um “kotatsu” (aquecedor elétrico) embutido.
Aproveitamos a oportunidade para
criarmos a nossa regra de convivência, discutindo os pontos importantes de como
manter o alojamento limpo, agradável e funcional.
A questão do horário de dormir, o
silêncio, apagar e acender a luz, o respeito mútuo entre nós e das nossas
diferenças seriam temas constantes em nossas conversas,
já que éramos apenas três pessoas
vivendo no mesmo alojamento e, quem e o que fazer na hora da refeição e como
utilizar o “ofurô” (banheira).
Fiquei escalado para lavar as louças,
já que não sabia cozinhar.
Quanto ao banho, haveria rodízio.
O primeiro sempre lavava e enchia a
banheira de água quente.
Somente o último tinha o direito de
fazer a imersão no “ofurô”.
Os outros tomavam banho de caneca,
porque não tínhamos chuveiro ali naquela casa.
Paz
Shima
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