SEGUNDA-FEIRA, 18 DE MARÇO DE 2013
É
TUDO UMA COISA SÓ
Os cientistas começam a elucidar a ligação evidente entre a
barriga e nossos sentimentos
Texto: Milly
Lacombe e Teté Martinho
* -
Ilustração: Katie Scott
Revista Trip 13/03/2013
Pesquisando o complexo sistema nervoso que comanda a
digestão,
os cientistas começam a elucidar a ligação evidente
entre a barriga e nossos sentimentos — e a entender o que a medicina oriental
já dizia: que é preciso digerir bem o medo, a raiva e a angústia.
E que físico e emocional são inseparáveis
Atire a primeira pedra quem nunca sentiu frio na
barriga de medo.
Ou teve de sair correndo para o banheiro em uma situação
de tensão.
Ou perdeu o apetite ao se apaixonar loucamente.
Ou sentiu o estômago revirar diante de uma visão
repulsiva.
Ou engordou por ansiedade.
Ninguém nega que a barriga seja um campo fértil para a
somatização, o nome genérico que se dá à transformação de emoções negativas em
males físicos, com consequências tão graves que chega a ser reconhecida pela
Organização Mundial de Saúde.
Mas por que tanto assim?
A resposta pode estar no estudo aprofundado sobre a
respeitável rede de neurônios que comanda a função digestiva, e na revelação de
que boa parte dos neurotransmissores que circulam pelo corpo, carregando
emoções e sensações, tem origem no intestino. Incluindo a serotonina, hormônio
do bem-estar.
“Na verdade, essas descobertas só dão base concreta ao que já
sabíamos intuitivamente”, diz Marcílio
Hubner de Miranda Neto, médico e coordenador do Laboratório de Pesquisas em
Neurônios Entéricos da Universidade Estadual de Maringá (PR)
“A vida emocional tem relação direta com os hábitos alimentares,
e o funcionamento da digestão é diretamente influenciado pelas emoções”
Cada uma à sua maneira, as medicinas, filosofias e
religiões orientais conhecem e explicam essa via de mão dupla há milênios.
Os japoneses acreditam que é na barriga que se sente,
se pensa, se tomam decisões, se guardam segredos.
A importância do hara na cultura japonesa se reflete
em uma coleção de expressões populares, envolvendo a barriga, de fazer inveja
às nossas, que não são poucas (leia o boxe “A voz das
tripas”)
O sistema de chacras, que sustenta até hoje a medicina
hindu e está na base da filosofia dos iogues, relaciona intimamente emoções e
órgãos.
Descritos pela primeira vez nos Vedas, textos hindus
datados de 2 mil anos antes da era cristã, os chacras (roda, em
sânscrito) são sete redemoinhos de energia que se alinham ao
longo da coluna.
Cada um tem a incumbência de distribuir o nutriente
que vem da respiração – o prana – a um grupo específico de órgãos; e a cada um
cabe processar pensamentos e sensações específicos.
A barriga abriga dois chacras importantes: o segundo,
swadhisthana, ligado ao aparelho reprodutor, ao impulso sexual e às funções de
desintoxicação; e o terceiro, o manipura, que o guru brasileiro Sri Prem
Baba define como
“a sede do poder de realização e do ego” (leia entrevista
a
Arthur Veríssimo nas páginas a seguir)
Se os chacras não funcionam bem, por algum
desequilíbrio, podemos reter sentimentos como medo, raiva e angústia, explica Simone
Caldeira,
terapeuta corporal que usa o toque para trabalhar a
integração craniossacral.
Os órgãos podem ter ou não sua função otimizada,
dependendo de como a energia flui por eles.
“Se o chacra está bloqueado, as funções físicas e emocionais
também estão”, diz.
Nesse pensamento, físico e emocional “são uma
coisa só”
A medicina tradicional chinesa, que considera a
barriga “o centro do homem”, estabelece com precisão como cada
emoção negativa altera o funcionamento dos órgãos.
“Baço, pâncreas e estômago metabolizam a comida, transformando-a
em um substrato sem o qual nada no corpo funciona”, diz o acupunturista Marcius Luz, de São Paulo.
“Se a energia dos órgãos se desequilibra, o substrato acumula,
gerando obesidade, por exemplo”
A desarmonia pode vir de excessos alimentares ou emocionais: para os chineses, preocupação
excessiva e pensamentos obsessivos esgotam a energia do baço, e a raiva afeta o
fígado.
O segundo
cérebro
Praticada há 5 mil anos na Índia e cada vez mais
conhecida no resto do mundo, a ayurveda tem uma imagem curiosa para a digestão.
Segundo essa medicina, a barriga abriga o agni, um
fogo metabólico que processa não só comida, mas tudo que experimentamos: emoções,
memórias, sensações.
Se o agni é ou está fraco, toxinas e emoções se
acumulam, gerando dor,
suscetibilidade à infecção e obesidade, assim como
depressão, fadiga e dificuldade de se manifestar.
“Por isso, o abdome é o centro das emoções”, diz Erick Schulz, vice-presidente da Associação
Brasileira de Ayurveda.
“A região abdominal é nosso centro de energia. É como se fosse
uma segunda mente”, diz a monja Coen, fundadora da Comunidade
Zen-budista,
em São Paulo.
Nesse ponto, a neurociência tende a concordar.
Com 100 milhões de neurônios acomodados do esôfago ao
ânus – mais do que o resto do sistema nervoso periférico inteiro –, o aparelho
digestivo é,
de fato, um segundo cérebro.
O primeiro a dizer isso com todas as letras, em 1996, foi o neurobiólogo norteamericano Michael
Gershon, que chefia o departamento de anatomia e biologia
celular da Universidade Columbia, em Nova York.
Em seu livro The Second Brain, ele explica que, para administrar
cada reflexo, espasmo e mudança química necessária à transformação dos
alimentos – do esôfago ao estômago, do intestino delgado ao cólon –,
o aparelho digestivo precisa avaliar cada situação,
decidir-se por uma linha de ação e iniciar movimentos.
Daí ser relativamente autônomo em relação ao cérebro,
e daí envolver tantos circuitos de neurônios, neurotransmissores e proteínas.
“O intestino realiza funções de alta complexidade.
Se ele não pensa de forma autônoma, como o cérebro, é certamente
embarcado com grande inteligência”, diz Luiz Guilherme
Correa, médico formado pela Universidade de São Paulo (USP), onde também cursou filosofia, e
especializado na medicina tradicional indiana.
Essa complexidade deve explicar, acredita Gershon, por que doenças como ansiedade,
depressão e síndrome do intestino irritável se manifestam de formas associadas
no cérebro e no aparelho digestivo.
Grosso modo, nossos pensamentos e emoções são
influenciados pelo que acontece nos intestinos, e vice-versa.
E tem mais.
“Sabemos, pela neurociência, que 90% da serotonina não é
produzida no cérebro, mas no abdome, na região do intestino e do fígado”, diz Ricardo
Ghelmam, que coordena o Núcleo de Medicina Antroposófica da
Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp).
“Então, se uma pessoa tem depressão, por exemplo, isso não é um
problema de cabeça, mas do metabolismo digestivo”
Para a medicina antroposófica, o abdome está ligado à
vitalidade e à força de vontade.
Com tantos fios conectando emoções e digestão, parece
claro que, para o bem da barriga, é preciso cuidar da cabeça – e vice-versa.
“Se você quiser aumentar a serotonina, a vontade de viver, o
impulso de vida, tem de estimular essa força metabólica ligada à barriga”, diz Ghelmam.
“O sedentarismo e a alimentação pobre em fibras vão na direção
oposta disso, gerando doenças crônicas degenerativas, como diabetes,
hipertensão e até câncer.”
Fortalecer a musculatura do abdome por meio de
práticas voltadas diretamente para ela, como ioga, tai chi e pilates, também é
uma forma de estimular as funções digestivas – e, por consequência, serenar as
emoções.
A monja Coen sugere um começo:
“Respirar de forma consciente, profunda e suavemente, sentindo o
abdome se expandindo e retraindo, é o caminho para nossa casa do tesouro, que
jamais se exaure”
Respirar fundo é básico, concorda Simone
Caldeira.
Para se sentir melhor e para não ter barriga
proeminente.
“O diafragma, responsável pela respiração, é um músculo
intimamente ligado ao medo e ao estresse.
Em estresse, ele ‘respira curto’, e isso
causa dezenas de problemas”,
explica.
Na floresta, os animais respiram curto para não serem
ouvidos pelos predadores.
“A respiração faz um barulhinho que, na floresta, pode custar a
vida”, diz.
Pela mesma razão instintiva, homens e mulheres encurtam
a respiração quando têm medo.
“Em cidades como São Paulo, o predador está presente o tempo
inteiro, na forma do chefe, do rival, da violência.
Então a gente respira curto sem notar”
Com a tensão que isso gera, o diafragma é empurrado
para baixo, na direção do chão, pressionando todos os órgãos e forçando o
abdome para frente.
“Os homens têm muito isso.
E aí pode malhar quanto quiser que a barriguinha não sai.”
A voz das
tripas
Expressões idiomáticas em várias línguas põem emoções como medo,
raiva e vontade no devido lugar: a barriga
A ligação entre emoções e barriga pode ser um mistério
que só agora a ciência ocidental começa a elucidar.
Mas, na língua do dia a dia, sempre foi dada como
certa.
E não só na nossa.
Entre as sensações “estomacais” universais que ganham expressão
inclui-se aquele misto característico de ansiedade, excitação e medo.
Em inglês e alemão, borboletas
no estômago; em espanhol, bolhas de sabão na barriga; aqui, frio na
barriga
Usamos soco no estômago para falar tanto de agressão física
quanto de qualquer outra que pegue no lugar certo.
E não somos os únicos a confundir náusea física e desgosto
ético:
em inglês, francês, espanhol e alemão, algo revoltante
dá vontade de vomitar
Se em português é preciso ter
estômago para aguentar uma situação aviltante, em inglês a
expressão equivale a querer.
A cultura anglosaxônica também põe coragem e intuição
na barriga.
Ter tripas é ter, digamos, colhões; e sentir nas
tripas é ter uma revelação.
Nada se compara, porém, à barriga dos japoneses.
O hara não é só abdome, intestino, estômago.
É onde moram coragem, determinação, vontade,
imaginação e entendimento, além do lugar onde as decisões são tomadas.
Assim, barriga grande é metáfora para mente aberta; barriga
pequena, para pobreza de espírito; barriga
dura equivale ao nosso “coração
de pedra”; ler o estômago de alguém é entender a intenção alheia; ir pela
barriga, agir com integridade; guardar na
barriga, manter segredo.
Quando os japoneses ficam bravos, a barriga
ferve.
Já para os franceses, estar com o coração na barriga
equivale a ter “sangue nos olhos”.
A barriga dos franceses também é uma espécie de ponto fraco, em
matéria de honra: pisar na barriga de alguém é passar por cima da
pessoa.
Idem para os alemães, que chamam fracasso de barrigada
Fonte:
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