sábado, 10 de
março de 1990
Uma Peregrinação na Terra do Sol Nascente
Parte IV
10/03/1990
Rumo ao Japão
A decolagem foi
tranquila embora eu estivesse com as minhas mãos suando frio, o coração
acelerado e, com palpitações no peito e no estômago causado pela tensão, quando
senti que as rodas do avião estavam soltas no ar.
O rangido que fazia quando os trens de pouso estavam sendo
recolhidos,
além da trepidação causada pela rajada de vento arranhando a
fuselagem, quase me fizeram molhar as calças.
Assim que o Boeing estabilizou no seu curso de voo, corri para o
banheiro.
O tempo parece que
havia parado, olhava constantemente o relógio e os ponteiros pareciam estar
dormindo.
Já havia levantado
umas “dezenas” de vezes para ir até o fundo do avião e fumar um cigarro.
O ambiente estava silencioso com os passageiros perdidos no
terceiro sono.
O único som que
ouvia era os das quatro turbinas do monstrengo branco, que de vez em quando
parecia que ia desabar em queda livre ao passar pelas zonas de turbulências.
Parecia uma estrada esburacada, daquelas do interior do Goiás,
quando vamos para uma fazenda.
Sem sono ficava pendurado na janela olhando para o vazio.
Pelo tempo de viagem devíamos estar passando por cima da
floresta amazônica, encoberta pelas densas nuvens.
O céu estava coberto
de estrelas cintilantes parecendo com milhares de vagalumes espalhados na
colina.
Uma luz branca
prateada iluminava a escuridão com a lua agora toda inflada parecendo estar na
sua fase cheia.
Mal começou a viagem
e já estava agoniado.
Imagina então ter
que suportar ficar aprisionado dentro de um casulo,
sem poder abrir a
porta só para dar uma volta lá fora, nas próximas 10 horas, antes de chegar a
Los Angeles, onde faríamos um pouso para reabastecimento.
E, depois, ter a paciência de Jó nas
próximas 12 horas?
Já cansado de não fazer nada senão ficar andando em círculos no
fundo do avião, retorno para o meu assento que ficava na ala central,
tentando não atrapalhar o sono do passageiro que está ao meu
lado.
Ao me acomodar, puxo o cobertor para poder me aquecer um pouco.
O ar condicionado parece ter sido fabricado no pólo norte.
Minhas pálpebras pesadas parecem ter passado por uma tempestade
de areia.
O corpo parecendo uma tonelada de carne, não suporta o próprio
peso e se afunda na poltrona.
Antes que a sombra da noite cubra meus olhos, uma imagem
angelical surge diante de mim, num sorriso meigo e, quando seus lábios se
aproximam dos meus, eu adormeço.
A viagem até o
aeroporto de Los Angeles prosseguiu tranquila sem nenhuma ocorrência.
Menos mal, com a
metade do percurso chegando ao fim.
Há poucas horas
estava vendo, maravilhado, as luzes das cidades do México.
Uma bela vista
surgia lá embaixo com o mar avançando pelas encostas do litoral da Califórnia.
As elevações de
montanhas lembravam muito, as serras do Mar do litoral paulista.
O que me deixava um
pouco confuso era que ali estava amanhecendo ainda, enquanto o meu relógio
avisava que já era a hora do almoço.
Complicado este
negócio de fuso horário.
Pouco depois estavam
servindo o café da manhã.
Umas duas horas após o pouso para abastecer o avião, começamos a
taxiar para a cabeceira da pista para a decolagem.
Minutos depois, percebemos que algo estranho estava ocorrendo
com o Boeing, porque ele retornava para o aeroporto.
O comandante do avião, no mesmo instante avisa que houve uma
pane no sistema hidráulico e estava levando o avião para o hangar para a
vistoria e reparos.
Suspirei aliviado: “Ainda bem que não tinha decolado.
Melhor aqui do que cair no Alasca!”.
Só não queria voltar
para aquele salão onde os passageiros ficam confinados enquanto aguardam o
embarque para continuar a viagem.
No trajeto pelo
corredor a gente é acompanhado por agentes de segurança o tempo todo, com
outros vigiando cada movimento nosso.
Parece uma prisão
mesmo!
Nessa hora senti
pena dos animais dentro do zoológico.
Fazer o que!
Cada país tem suas
regras e seus costumes, era melhor eu ir aprendendo a conviver com isso, afinal
estava indo para outro país,
onde a cultura, o
idioma é totalmente diferente do nosso.
Pensativo com tantos aborrecimentos que têm ocorrido comigo nas
últimas semanas, nem me dei conta do tempo.
Quando percebi já estávamos caminhando pelo corredor –
infelizmente voltamos para lá – em direção do portão de embarque, onde o nosso
avião aguardava.
Mesmo com duas horas de atraso, estava conformado com essa
viagem,
que por ser uma novidade para mim, ajudava demais a arejar a
cabeça.
Se não fosse esta agonia que sentia, poderia aproveitar melhor
esta aventura.
Horas depois
estávamos sobrevoando uma parte do Pacífico em direção ao Alasca.
Era legal observar o
aviãozinho no monitor que mostrava todo o trajeto com os detalhes do vôo.
Antes pensava que a
gente ia em linha reta paralelo ao equador até o Japão, mas observando a rota
percebi que era mais inteligente contornar o globo indo de São Paulo para o
oriente passando por Los Angeles, Alasca e Ilhas Aleutas e depois ir descendo no sentido sul até chegar no Japão.
O mais intrigante
era a posição do sol.
Parecia o dia mais
longo que já passei na minha vida.
Uma hora o sol
estava à direita seguindo em direção ao mar.
Horas depois estava
à esquerda seguindo a direção da asa direita.
Vai entender isto?!
Quase doze horas depois de sair do aeroporto de Los Angeles
consegui avistar o Monte Fuji.
Fiquei lá da janela do fundo do corredor contemplando aquela tão
sonhada imagem.
Embora cercada por algodões brancos, enxergava um borrão negro
coberto por neves.
Logo a seguir ouvi o aviso para apertar os cintos de segurança.
O “indestrutível” elefante branco
agora fazia manobras para apontar a sua tromba na direção da cabeceira da pista
encoberta por névoas brancas, como se estivesse vendo as “Brumas de Avalon”.
Em cerca de meia hora estávamos estacionando defronte a uma
imensa estrutura metálica, toda envidraçada.
Senti-me em outro mundo.
Assim que coloquei
meus pés em solo japonês, a primeira impressão que tive foi o brilho dos pisos,
a limpeza do local parecia um brinco.
Depois de uma longa
viagem, nada mais justo do que esticar o esqueleto, respirar o ar puro.
Segui a fila que
terminava nos guichês do Departamento de Imigração.
A conferência do
passaporte e do visto estava tudo certo e fui liberado rapidamente.
Dali em diante era
pegar as bagagens, ir para a alfândega e encontrar o pessoal da agência de
viagem, que deviam estar aflitos pelo atraso.
Já passavam das três
horas da tarde do dia 11.
Havia algo estranho
no ar, porque a diferença de horário entre o Brasil e o Japão era de 12 horas,
então não entendia direito o que tinha acontecido se a duração da viagem que
seria de 24 horas, no meu relógio estava marcando que a jornada foi feita em 39
horas.
Descontando os
atrasos, eu tinha realmente atravessado o túnel do tempo, porque estou agora,
12 horas na frente.
Aqui é quase 4 horas
da tarde de domingo, enquanto no Brasil são 4 horas da madrugada.
Complicado de
entender isto.
O aeroporto de Narita, parecendo uma cidade, apinhada de gente
estranha bem arrumada, uniformes impecáveis.
Eu estava um pouco atordoado, talvez afetado pelo fuso horário,
mas aqueles zumbidos de um enxame de abelhas em minha volta fazia a minha
cabeça rodar mais.
Sem entender o que diziam, os altos falantes me transportaram
para outro planeta.
A sensação era de estar numa terra de gigantes, de tão encolhido
que eu ficava.
Ao perceber, já estava na fila da alfândega olhando aqueles
policiais sorridentes e simpáticos, dentro daquelas fardas azuis claras.
Ao chegar a minha
vez, um deles mostrou-me um cartaz com vários desenhos bem específicos.
Questionado se
trazia em minhas bagagens um daqueles itens, neguei balançando a cabeça e
fazendo gestos com as mãos.
Como ele ficou na
dúvida, por causa da minha ignorância com o idioma deles, pediu educadamente se
podia abrir a minha sacola de viagem.
Tranquilamente
coloquei a bagagem sobre o balcão e comecei a abrir o zíper.
Tirei o primeiro
pacote que a minha cunhada havia pedido para trazer e abri para retirar as
revistas e entregar para ser vistoriado.
Ao perceber a
segunda revista que estava por baixo da “Veja”, fiquei branco.
- Kore wa nan desu ka?
– “O que é isto?” – disparou o
policial, agora de cara fechada, abrindo as páginas e me apontando para as
imagens contidas na revista Ele e Ela.
Eu estava mais
surpreso que ele.
Não sabia o que
dizer – não falo o japonês – e muito menos não tinha explicação nenhuma.
Eu não sabia da
existência dessas revistas, que são consideradas pornográficas por eles,
portanto, contra a lei japonesa.
Suava da cabeça aos
pés e, tremia.
O policial
percebendo a minha situação exigiu que eu colocasse a outra bagagem no balcão
que ele ia revistar tudo agora.
Ao abrir a mala
fiquei pálido novamente.
Agora estava ferrado
mesmo.
Como ia explicar
aquilo que estava na mala.
A minha mãe havia
colocado contra a minha vontade aquela folha verde trançada para dar sorte.
Como encarar aqueles olhos faiscando de
raiva, que se sentiu enganado por mim?
Não tinha palavras para explicar que aquilo não era maconha.
E ele cheirava, apertava, mexia.
Olhava para mim e eu abaixava a cabeça.
Continuou fuçando tudo, retirando as minhas roupas e jogando sobre
o balcão.
Eu já estava vermelho de vergonha com todo mundo olhando para
mim e para as minhas cuecas expostas sobre um monte de trapos.
Aí, quando o policial parou de repente de remexer dentro da
minha bagagem e me encarou novamente, vi que a coisa ficou preta mesmo!
No fundo da mala,
espalhado por todos os cantos havia manchas brancas do pó antisséptico Granada,
que tinha aberto durante a viagem.
O policial passou os
dedos no pó e levou até à língua onde experimentou o gosto amargo.
Rapidamente mostrei
a embalagem aberta e apontei para o meu pé.
Foi cômico demais.
Ele fez careta com o
nariz e ficou mais zangado ainda.
Pelo menos não era
cocaína.
Aí chegou uma
brasileira que estava na fila e, preocupada comigo perguntou se podia ajudar,
pois falava o idioma japonês.
Nessa hora agradeci
aos céus e só não ajoelhei porque estava paralisado de medo.
Ela esclareceu a
tradição sobre aquela erva e o policial ficou satisfeito com a explicação.
Ao perguntar ao policial o que mais estava havendo,
imediatamente ele pegou as revistas Ele e Ela e a Playboy e colocou na cara
dela.
A mulher ficou sem graça, me olhou nos olhos e sem dizer mais
uma palavra, virou-me as costas e foi embora chocada.
O policial então me chamou para o lado, mandou guardar tudo e
pegou o saco com as revistas e pediu para acompanha-lo.
Fui parar no posto policial do aeroporto.
Pensei comigo mesmo:
“Nem cheguei e já vão me despachar de volta para o Brasil.
Estou ferrado agora!”.
O apuro foi passar pelo interrogatório onde eu não entendia nada
do que eles me perguntavam e, do lado contrário eles não entendendo bulhufas do
que eu dizia.
Acho que a simpatia nasceu entre nós, porque acabávamos rindo
das nossas dificuldades de comunicação.
No fim, foi feita a ocorrência daquela infração e o policial instruiu-me
a preencher um formulário para entrar com uma petição no Ministério da Justiça
para reaver os materiais apreendidos.
Uma hora depois
estava andando a procura da saída do aeroporto e ao encontrar um portão com a
palavra escrita em inglês “Exit”, foi por ali mesmo que passei.
Já na parte externa
fiquei procurando o pessoal.
– “Caramba, acho que já foram embora!”, pensei, tentando controlar o início de um pânico.
Não sabia o que
fazer.
Nem para que direção
ir.
Estava perdido.
Parei por um
instante, fumei um cigarro para me acalmar enquanto tentava achar uma resposta
para aquela situação bizarra.
Imaginei o que faria
se estivesse no Brasil.
Rapidamente comecei
a varrer com os meus olhos tudo à minha volta e vi.
Fui apressado para
lá e quando cheguei ao balcão, joguei o meu passaporte em cima e as passagens,
chamei a atenção da atendente
– linda por sinal - que ao virar-se para mim, eu apontava com o dedo o nome do meu pai dentro do passaporte e
ouvindo-me dizer desesperado:
Father, father!
Ela, sorrindo pegou
meu documento e o microfone.
Logo em seguida eu
estava ouvindo pelo alto falando, ela chamando o meu pai.
Em poucos instantes
eu avistei a “sétima cavalaria” vindo em disparada na minha direção.
Estavam assustados e
me encontraram desta vez, sorrindo!
Fomos direto para o estacionamento enquanto ia explicando tudo o
que tinha acontecido.
O meu pai estava branco pelo susto que passou.
As pessoas que vieram comigo do Brasil riam da minha história,
enquanto a van que nos levavam entrava na rodovia em direção a
Tokyo.
O crepúsculo anunciava que esta seria a minha primeira noite no
país do sol nascente.
Ao cruzar o centro da capital japonesa fiquei impressionado com
a quantidade de roupas penduradas nas varandas dos apartamentos ao longo da
rodovia.
Parecia uma metrópole de favelas.
Essa foi a minha impressão que contrariava a imagem que eu tinha
da cidade de Tokyo, através de fotografias e imagens das revistas.
Atravessamos Tokyo e
seguimos em frente até a cidade de Yokohama,
onde paramos
defronte a um prédio.
Subimos as escadas
com as bagagens e nos mostraram os alojamentos em que passaríamos a noite.
Conforme as pessoas
entravam tiravam os sapatos e pegavam as sandálias arrumadas nas prateleiras ao
lado da porta.
A cozinha chamou-me
a atenção porque ficava logo na entrada e era pequena.
Havia apenas uma
mesa estreita e comprida encostada na parede.
O fogão era igual
aquele de acampamento, só tinha duas bocas.
A panela de fazer
arroz eu já conhecia, era igual ao que se tinha no Brasil.
A ausência da sala
chamou-me a atenção, com apenas dois cômodos com tatame para estender os
colchonetes.
Na manhã seguinte
todos deveriam se apresentar para as entrevistas.
Assim que todos se acomodaram foram se reunindo na cozinha.
Naquele prédio havia mais brasileiros alojados e recebíamos as
visitas de uns com alegria e curiosidade.
A troca de informações era muito importante ajudando a resolver
os problemas imediatos, principalmente com a regra de como usar o ofurô,
porque a fila era grande naquele momento.
Já passava das sete horas da noite.
Alguns estavam com fome e outros sentiam os efeitos do fuso
horário ficando na dúvida se jantavam ou tomavam o café da manhã.
Como só havia mantimentos para a refeição noturna, o jeito foi
improvisar tudo.
No meu caso eu estava no segundo grupo e sentia meu corpo
baqueado por causa do horário maluco que estava vivendo.
Era uma sensação muito estranha.
O interior da minha cabeça parecia um vácuo impedindo um
raciocínio lógico.
Sentia uma letargia como se tudo à minha volta estivesse rodando
em câmera lenta.
Foi neste estado que
comi o meu primeiro lámen japonês com uma porção de arroz.
Meu pai e eu
improvisamos um canto para comer enquanto a nossa conversa ia de um ponto a
outro, com ele querendo saber da família no Brasil e eu perguntando como estava
a saúde dele, além de estar curioso querendo saber como ele estava se virando
aqui neste país.
Nesta época no
hemisfério norte era a estação de inverno, por isso sentia um frio danado
encolhendo-me a todo instante.
Como o meu pai disse
que estava apenas resfriado por causa do tempo gelado, fiquei tranquilo quanto
à saúde dele.
Parecia estar ótimo,
melhor que eu naquele momento.
Enquanto
conversávamos ia tomando consciência de alguns detalhes sobre os costumes
daquele país, pois o meu pai falava e escrevia o japonês, melhor do que muitos
nativos dali.
Orgulhava-me disto.
Estava morando numa
cidade chamada Toyohashi que ficava bem longe dali, numa região mais ao sul de
onde estávamos, e ele viera naquele trem bala que tanto já tinha ouvido falar.
Embora ele estivesse
empregado naquela cidade, disse-me que ia fazer também a entrevista no dia
seguinte para ver se conseguia outro emprego perto de mim.
Deu-me algumas
orientações sobre como comportar diante dos japoneses – ele estava no Japão
desde o segundo semestre de 1989
-, e ensinou-me rapidamente algumas palavras
básicas em nihongô (idioma japonês).
Então, após o jantar não tinha mais coragem nem para continuar
conversando.
Morto de cansado eu fui para o canto num dos cômodos, arrumei a “minha cama” e, apaguei.
Paz!
Shima
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