quarta-feira,
12 de março de 1997
Uma Peregrinação na
Terra do Sol Nascente
Parte V
12/03/1990
O Início da Jornada
Bem cedo, fui acordado para o café da manhã.
Sonolento, rolava de um lado para outro tentando despertar o corpo
e me aquecer, porque parecia estar dentro de uma câmara frigorífica.
O fato de haver muitas pessoas juntas auxiliava o pequeno aquecedor
que não dava conta de aquecer o ambiente.
Feito o desjejum descemos para o escritório da empreiteira que
ficava no térreo do prédio.
Chegando lá, nos acomodamos nas poltronas enquanto aguardávamos a
chamada para a entrevista individual.
A pessoa que falava bem o nihongô era selecionada para empresas
melhores e mais exigentes.
Na minha vez, acompanhado do meu pai que serviu de intérprete para
mim, ficou caracterizado a minha total ignorância relacionada ao idioma
japonês, o que após verificarem as vagas disponíveis,
acharam uma empresa em Shiraoka, cidade que ficava numa província
de Saitama.
Após preencher os formulários do contrato, assinar a confissão da
dívida das passagens de ida e volta e ter o meu passaporte retido como uma
espécie de garantia, eu fui encaminhado para o grupo que seria despachado para
a tal cidade.
Um japonês foi apresentado para mim como o meu responsável dali em
diante e que ele seria o encarregado de cuidar de tudo relacionado ao meu
trabalho na fábrica, de resolver as minhas necessidades básicas no que se
referisse às informações da minha estadia no Japão, providência de
documentações, pagamentos de contas, assuntos sobre a convivência no alojamento
e os relacionamentos com a vizinhança.
Rapidamente entramos na van e voltamos pelo mesmo caminho do dia
anterior, atravessando o centro de Tokyo e pegando uma rodovia expressa que
seguia em direção ao norte do país.
Dentro do veículo iam apenas cinco pessoas.
O motorista, o encarregado, meu pai, eu e aquele rapaz que
conseguira a vaga lá de Brasília.
A empreiteira selecionou apenas nós dois para a fábrica de
Shiraoka.
O meu pai não conseguiu nenhuma vaga por causa da idade dele,
embora dominasse o idioma japonês e, estava indo junto como meu
acompanhante, sendo permitido pernoitar comigo, já que ele garantiu que
voltaria para Toyohashi no dia seguinte.
Durante a viagem ficava admirado pelas ótimas condições das pistas
e a estrutura da rodovia, inclusive quando atravessamos uma das pontes do rio
Edo, chamou-me a atenção, as construções delas.
Eram todas de ferro e aço.
Desde a nossa saída de Yokohama, não havia espaço entre uma cidade
e outra, todas eram contínuas até chegar a Saitama.
O planalto de Kanto totalmente tomado pelas cidades parava nos
paredões montanhosos na linha do horizonte, cobertos de neve.
A vista era maravilhosa, principalmente para um turista que sonhava
um dia conhecer o Japão.
Ao chegarmos a Shiraoka fomos levados direto para o alojamento,
que na verdade era uma daquelas casas antigas que vi ao longo da
rodovia.
Foi somente o tempo de deixar as bagagens e entrar de novo na van.
O meu pai ficou no alojamento enquanto seguimos o nosso destino,
porque o dono da fábrica estava aguardando a gente para a
apresentação e uma nova entrevista.
Ficava até perto, porque levamos uns 10 minutos de carro até lá.
Ficava em outro bairro chamado Shimoozaki e parecia um setor de
indústrias.
A primeira impressão que tive ao ver a fábrica do lado de fora,
deixou-me muito curioso pelo formato da sua construção.
As paredes pareciam feitas de telhados ondulados.
Era um galpão não muito grande e eu diria que era uma pequena
empresa, quase de porte médio, não mais que isso.
Esta conclusão baseava-se nas várias indústrias que avistei no
percurso até chegar ali.
A recepção do dono da fábrica me surpreendeu.
Cumprimentou-nos efusivamente demonstrando ser um homem dinâmico e
persuasivo.
De estatura média, pouco acima do meu ombro, cabelos pretos ao
estilo tradicional, vestindo o uniforme branco da Honda.
Possuía um olhar bem inquisidor e um rosto tão jovial quanto
alegre.
Aparentava uma idade entre 45 e 50 anos.
Seus gestos eram bem educados demonstrando ter uma formação
familiar bem tradicional.
Confesso que me simpatizei logo de cara com ele.
Ele nos convidou para entrar no escritório onde nos apresentou o
gerente dele e em seguida pediu-nos para sentar indicando as poltronas em volta
de uma mesa baixa.
Novamente me surpreendo com a forma como somos recepcionados.
Ficamos sentados de frente para a entrada numa posição
privilegiada.
Estranhei isso porque ele era o dono e o nosso futuro patrão.
Trouxeram chá verde e umas toalhas pequenas enroladas, para limpar
as mãos e o rosto.
Logo em seguida o encarregado da empreiteira entregou as nossas
fichas e fez as apresentações.
Eu apenas abaixei a cabeça em sinal de respeito sem saber o que
dizer ou como responder algumas perguntas que ele fez para mim.
Compreensivo e atencioso deixava-nos muito à vontade na presença
dele.
Conforme ele ia explicando as condições e as regras da empresa, o
encarregado ia traduzindo, inclusive as perguntas e dúvidas que apareciam
durante a entrevista de nossa parte.
Em seguida levantou-se e nos convidou para conhecer as instalações
da fábrica.
Ao entrarmos no galpão senti meu corpo petrificar com o susto que
levei quando comecei a ver o ambiente lá dentro.
O contraste entre o uniforme do patrão e do pessoal que trabalhavam
nas máquinas era assustador.
Parecia marrom ou camuflado de preto, tal era a quantidade de óleo
e graxa espalhados inclusive nas paredes.
Enquanto o patrão ia explicando o tipo de serviço que faziam ali
– solda de escapamentos –,
eu pude reparar que o pessoal usava grossas luvas com duas camadas para não se
queimarem.
Mostrou-nos a seção de robôs que soldavam as peças, do lado direito
do corredor central e fiquei feliz em conhecer essas máquinas pessoalmente,
porque só as tinha visto através de ilustrações.
Era impressionante a precisão e a velocidade desses robôs.
Agora dava para entender a produtividade japonesa.
Quando nos mostrou o setor de prensa eu fiquei arrepiado.
Imaginei uma pessoa sendo esmagado naquela pressão de toneladas de
força.
Já tinha conhecimento de acidentes com esse tipo de trabalho.
Rezei para não ser escalado ali.
Continuamos o restante da visita conhecendo o pessoal e, entre os
japoneses – umas duas dezenas deles - contei quatro brasileiros e um paraguaio.
De novo retornamos para o escritório porque o dono da fábrica
queria saber se tínhamos gostado da empresa e do serviço dali.
Da minha parte fui sincero e disse que só poderia dizer quando
estivesse fazendo o serviço, porque nunca tinha trabalhado nesta área.
Faria um esforço para aprender.
Pelo jeito ele gostou e disse que ficaria comigo e com o meu
companheiro que veio junto.
Antes de encerrar a entrevista, o dono da fábrica perguntou ao
encarregado da empreiteira (tantousha), como tinha sido
resolvida a questão da nossa dívida das passagens.
Informado das condições de pagamento, ele imediatamente questionou
a questão da passagem de volta, porque ele disse que a gente não ia retornar,
então porque iam cobrar por um serviço que não usaríamos.
O encarregado ficou sem graça e tentou argumentar, mas o patrão não
concordou com essa atitude.
No fim da discussão, o patrão virou para o nosso encarregado e
pediu para avisar à empreiteira que era ele quem ia pagar as nossas dívidas das
passagens e, em contrapartida só ia cobrar de nós a passagem da vinda.
E encerrou o assunto.
Ficou acertado de começarmos a trabalhar no dia seguinte e nos
entregaram os uniformes e calçados especiais com ponta de ferro.
Despedimo-nos dele, e retornamos ao alojamento.
Quando chegamos ao alojamento, o “tantousha” nos chamou na sala e apresentou as condições do contrato de
trabalho.
O salário seria de oito mil ienes por dia e, se necessário devíamos
cumprir as horas extras que a fábrica necessitasse de nós.
A semana de trabalho seria de segunda a sábado, com folga nos
domingos.
Como fomos contratados diretos pela fábrica, então a empreiteira
ficaria responsável apenas pela prestação de serviços burocráticos e de auxílio
em nossa estadia no Japão, cuidando dos trâmites legais junto à imigração,
prefeitura e os serviços públicos.
Ficariam com os nossos passaportes até a quitação da passagem,
quando então os devolveriam para nós.
O tantousha deixou seu cartão de visitas com cada um e nos instruiu
para avisá-lo de qualquer problema que ocorresse tanto na fábrica quanto no
alojamento.
Como já era o horário do almoço, pegamos o meu pai e fomos almoçar
num restaurante.
À tarde, fui conhecer melhor o alojamento.
Penúltima casa do lado direito da rua, num estilo muito
convencional em relação às construções mais modernas, ficava no bairro chamado
Shinozu.
Atrás do conjunto de oito casas existia um campo de golfe, toda
coberta e cercada por uma tela verde.
Era um local tranquilo cercado de arrozais e bem afastado do centro
da cidade, porque não encontramos um restaurante nas proximidades e o comércio
praticamente inexistia.
Havia algumas bicicletas no fundo da casa e o encarregado falou
para pegar uma.
Escolhi a magrela preta.
Seria o meu transporte para o trabalho e lazer.
Além de nós dois havia mais um brasileiro que residia no
alojamento.
A entrada ficava do lado de trás.
Havia uma sala, cozinha, ofurô e um quarto.
Ao ver o local de fazer as necessidades fisiológicas – no Japão o
local de banho é separado -, fiquei decepcionado, porque além de ficar junto do
quarto, era do tipo de fossa com piso de madeira e um buraco aberto no centro.
Ao olhar para dentro daquele quadrado negro, eu vi um monte de
vermes brancos se mexendo lá no fundo.
Saí dali querendo vomitar com o cheiro desagradável.
Por causa disto escolhi o meu canto bem perto da porta corrediça
que dava para a varanda.
Enquanto apreciava um chá verde com o meu pai, continuamos a nossa
conversa da noite anterior.
Eu queria saber da possibilidade dele retornar em seis meses para o
Brasil, que era esse o tempo que tinha planejado ficar aqui no Japão,
inclusive havia combinado isto com o meu irmão.
Antes não seria possível porque o pagamento da passagem havia sido
negociado para ser paga em cinco parcelas.
E depois eu tinha o compromisso com meu sócio que ficou cuidando
das duas empresas que deixei em Brasília.
Meu pai ficou pensativo analisando a situação dele que também tinha
ainda um compromisso a ser resolvido em Okinawa, relacionado aos antepassados
da família.
Explicou-me que não havia concluído os trabalhos e que precisaria
de mais tempo, senão teria que retornar depois se fosse agora para o Brasil.
Por isso, estava em Toyohashi trabalhando para poder se sustentar
aqui no Japão.
Lá em Okinawa não tinha serviço para ele e, como morava com
parentes, a situação era complicada e constrangedora.
Entendi a posição dele e concordei em aguardar o tempo que ele
achasse necessário.
Enquanto isso, pedi ao meu pai que me arrumasse um emprego na cidade
onde ele estava morando para poder ir para lá futuramente.
Os assuntos das nossas conversas começaram a variar de um tema para
outro.
Ele contava as experiências que teve neste período em que estava no
Japão, da história de Okinawa e, depois sobre a convivência com os japoneses.
Estava empregado numa empreiteira que trazia os brasileiros para
cá, e o serviço dele era fazer traduções dos documentos para a obtenção de
vistos, cuidando inclusive dos trâmites legais junto ao Departamento de
Imigração japonesa.
Fiquei feliz por ele estar bem e fazendo o que sempre gostou de
fazer, porque no Brasil ele dava com certa frequência, aulas de idioma japonês
em casa.
No meu caso, devido às circunstâncias de trabalho, não conseguia
fazer esses cursos que ele promovia.
O fato de não saber nada do nihongô, devia-se que em casa, a minha
mãe e o meu pai ou quando meus avós iam para Brasília, o idioma que falavam era
apenas o de Okinawa.
Pouco antes de nos recolhermos para dormir o meu pai perguntou se
eu tinha dinheiro para passar o mês e foi aí que me lembrei de que nem deu
tempo para trocar os dólares que, aliás, eu nem sabia onde e nem como fazer o
câmbio.
Como ele tinha uns 50 mil ienes, repassei para ele os quase 700
dólares que carregava comigo.
Segundo ele, esses ienes dariam para a minha despesa até receber o
salário da fábrica.
Minutos depois eu pegava no sono.
Paz
Shima
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